(Por Carlos Cardoso Aveline*)
O uso da palavra define o ser humano. Raramente, num instante de meditação, ficamos livres do pensamento. Uma das nossas características centrais é que falamos quase o tempo todo, não apenas com palavras físicas, mas também mentalmente. Quando não dizemos nada para os outros, estamos dizendo coisas para nós próprios. Quando não escutamos alguém, ouvimos dentro de nós a voz interior das esperanças e anseios que habitam nosso universo pessoal.
A fala, assim, é muito mais do que um mero som ou uma seqüência lógica de pensamentos. É uma corrente magnética cheia de vida. Para o cachorro, a voz do dono desperta devoção e um sentido natural de obediência. Para a criança pequena, a voz da mãe dá tranqüilidade e a faz dormir. Para aquele que busca compreender a si mesmo, a voz da consciência é seu grande mestre.
A filosofia esotérica ensina que o mundo físico, com suas três dimensões, é rodeado por um universo invisível, eletromagnético e transcendente. Nessa quarta dimensão, as distâncias físicas não têm importância. Esse mundo sutil é conhecido como luz astral, ou akasha. Nele estão registradas as imagens de todas as coisas que passaram e as sementes das coisas que virão. É um espaço-tempo diferente, que rodeia e também interpenetra o nosso pobre mundo tridimensional. Ali as coisas podem deslocar-se na velocidade do pensamento.
Esse mundo oculto é influenciado decisivamente pela palavra. “No início era o verbo”, diz a Bíblia (João,1:1). E o verbo ainda hoje cria o universo humano. Todos os dias, pela manhã, reinventamos a vida. É sempre aqui e agora que criamos o nosso destino futuro, através das palavras que dizemos para nós próprios e para os outros. Cada pensamento e cada som é um mantra, porque detém um poder mágico de influenciar a vida de modo profundo. Eliphas Levi escreveu: “As vibrações da voz modificam o movimento da luz astral e são veículos poderosos do magnetismo”.(1) As vibrações do pensamento que não é falado têm o mesmo efeito.
O poder da palavra é enorme, portanto. Ela salva e condena, ilumina e causa escuridão, faz adoecer, cura e dá esperança. O pensamento correto leva à palavra e à ação corretas, e disso surge a felicidade. Está escrito em “Provérbios”, um texto bíblico que transmite grande sabedoria:
“Uma resposta branda aplaca a raiva, uma palavra agressiva atiça a cólera. A língua dos sábios torna o conhecimento agradável, a boca dos insensatos destila ignorância. Em todo lugar os olhos de Deus estão vigiando os maus e os bons. A língua suave é árvore da vida, mas a língua perversa quebra o coração. (...) Os lábios dos sábios espalham conhecimento, mas o coração dos insensatos não é assim.” E poucas linhas mais adiante: “Abominação para Deus são os pensamentos maus, mas as palavras benevolentes são puras.”(2)
A palavra é a unidade básica do pensamento e da fala, e sempre chega ao seu destino. Ela produz um efeito eletromagnético, independentemente de nós sabermos ou desejarmos isso. Mas a parte principal do seu efeito se volta para nós próprios. As palavras que dizemos ficam gravadas em nosso inconsciente e se misturam ao nosso destino. Esta é uma lei inevitável, e por isso nossa vida é, de fato, resultado do nosso pensamento.
O Dhammapada, uma das escrituras do budismo, ensina:
“Tudo o que somos hoje é resultado do que temos pensado. O que pensamos hoje é o que seremos amanhã: nossa vida é uma criação da nossa mente. Se um homem fala ou age com uma mente impura, o sofrimento o acompanha como a roda segue a pata do boi que puxa a carreta. (...) Se um homem fala ou age com a mente pura, a felicidade o acompanha como sua sombra inseparável.”(3)
O Novo Testamento (Tiago, 3:2-3) afirma: “Aquele que não tropeça ao falar é realmente um homem perfeito, capaz de refrear todo seu corpo. Quando colocamos um freio na boca dos cavalos, a fim de que nos obedeçam, conseguimos dirigir todo seu corpo.” Assim como a cabeça do cavalo, a palavra vai na frente, abre caminho e define as linhas pelas quais o futuro será construído.
Mas a palavra também é resultado prático de uma determinada experiência de vida. Jesus Cristo ensina: “A boca fala daquilo de que o coração está cheio. O homem bom do seu bom tesouro tira o bem, mas o homem mau do seu mau tesouro tira o mal. Eu lhes digo que de toda palavra inútil que os homens disserem darão contas no dia do Juízo. Pois por suas palavras você será justificado, e por suas palavras será condenado” (Mateus, 12:34-37). Sobre o mesmo assunto, um mestre da sabedoria divina escreveu:
“O princípio fundamental do ocultismo é que cada palavra ociosa é registrada, do mesmo modo que cada palavra sincera e plena de significado.”(4)
O poder da palavra e do pensamento é como o fogo. Ele ilumina mas também pode queimar, e por isso deve ser usado com atenção e cuidado. Em geral, quem fala impensadamente também age sem pensar. Quando sabemos calar, fica mais fácil parar o pensamento e abrir espaço para a luz da intuição. Então passamos a perceber a verdade de modo cada vez mais direto, diminuindo a necessidade da intermediação do raciocínio.
Toda fala surge da ação e da vivência. Nenhum discurso pode ser mais forte que a prática da qual ele emerge. As palavras são extremamente úteis, quando sinceras. Mas só servem para desorientar quando estão divorciadas dos fatos. Nesse caso, elas desorientam muito mais aquele que diz do que aquele que ouve a falsidade, porque quem fala falsidades se acostuma com elas e perde o hábito de enxergar a verdade. Com isso, fica desorientado.
A ética budista recomenda a prática do pensamento correto, da palavra correta, da ação correta e do meio de vida correto. Os quatro pontos são inseparáveis. “A palavra correta, ou linguagem pura” – escreve Georges da Silva –, é a que traduz honestidade, verdade, paz, carinho; que é cortês, agradável, benéfica, útil, moderada e sensível. Significa abstenção das mentiras, da difamação, da calúnia e de todas as palavras capazes de provocar ódio, inimizade, desunião e desarmonia entre indivíduos ou grupos sociais.”(5)
Podemos usar com mais eficácia o poder da palavra se evitarmos a dispersão mental e emocional e aprendermos a desejar a verdade de todo coração. Essa meta, porém, não pode ser alcançada sem se enfrentar numerosas armadilhas. A verdade promove uma perigosa destruição da ingenuidade e da preguiça a que estamos, em geral, acostumados. Quando a ilusão desaparece, num primeiro momento nos sentimos órfãos. Só depois vem a sensação de liberdade.
Naturalmente, quem fala a verdade muitas vezes contraria interesses. A palavra sincera nem sempre encaixa nos esquemas dos poderosos. Aquele que tem coragem de ser íntegro percebe que muitas pessoas preferem desconhecer a verdade. “O pior cego é aquele que não quer ver”, diz um ditado popular. E, às vezes, os que não querem ver estão em maioria. “Em terra de cegos, quem tem um olho é rei”, diz outro ditado. Mas, na realidade, em terra de cegos, quem tem um olho pode ser duramente perseguido, especialmente quando insiste em falar sobre o que vê. Helena Blavatsky escreveu o seguinte:
“A sinceridade é a verdadeira sabedoria apenas para o filósofo moral. Ela é agressão e insulto para aquele que considera a dissimulação e o engano como cultura e cortesia (...).” Para Blavatsky, a palavra era uma das principais armas do guerreiro da luz. Ela não deixava dúvidas: “O nosso lema é e será sempre ‘não há religião superior à verdade’. O que procuramos é a verdade, e, uma vez encontrada, nós a colocamos diante do mundo, aconteça o que acontecer.”(6)
Embora possa ser atacado por dizer a verdade, o guerreiro da luz jamais usa a palavra com o objetivo de ferir alguém. Ele vigia constantemente a sua própria atitude para que a intenção permaneça pura e ele nunca seja distraído pelo desejo medíocre de uma pequena vingança, nem desorientado pela vontade de humilhar sutilmente outra pessoa ou de parecer que é melhor que alguém.
O uso eficiente do poder da palavra requer atenção, equilíbrio e coragem. A luz da palavra sincera revela verdades incômodas que a ignorância e a preguiça preferem rejeitar. “Toda palavra verdadeira é o começo de um ato de justiça”, disse um pensador sábio. Mas ele não disse que esse começo era cômodo. Eliphas Levi escreveu: “A beleza da palavra é um esplendor da verdade. Uma palavra verdadeira é sempre bela, uma bela palavra é sempre verdadeira.”(7)
Nem sempre é difícil falar a verdade. Quando há um clima de boa vontade e de liberdade de pensamento, as pessoas aceitam ser democraticamente contrariadas e não se ofendem com a primeira coisa desagradável que ouvem. Nas situações em que há confiança mútua, cada um pode falar com franqueza. Então os muros de defesa psicológica caem, as máscaras são abandonadas e todos saem ganhando com isso.
Não basta, porém, controlar no dia-a-dia as palavras que falamos. É necessário selecionar também as palavras que escutamos. Devemos decidir com atenção o que queremos ouvir no rádio ou na televisão. É recomendável evitar filmes de violência e outras “obras de arte” em que a mentira e o egoísmo estão muito presentes. Tudo o que vemos tem impacto sobre o nosso subconsciente.
As pessoas com quem escolhemos nos relacionar estreitamente devem ser bem selecionadas. É aconselhável adotar como amigos os mais sábios. Outra recomendação para a defesa da nossa alma contra emoções e pensamentos negativos é conduzir as conversas de que participamos para temas elevados. Podemos ganhar grande paz e sabedoria mantendo presentes dentro de todo e qualquer diálogo os sentimentos de ética, respeito e equilíbrio. A razão disso é simples. Cada palavra falada ou escutada fica registrada e passa a habitar a nossa aura, isto é, a atmosfera eletromagnética sutil que rodeia e acompanha nosso corpo físico.
É decisiva, portanto, a importância das boas conversas, das leituras sobre temas elevados, dos filmes e vídeos inspiradores. Os pensamentos positivos criam emoções construtivas e o resultado disso é boa saúde. A boa saúde, por sua vez, nos inclina a ter sentimentos e pensamentos construtivos, e assim se forma um círculo magnético de realimentação positiva. Não é por acaso que os gregos antigos tinham como lema “mente sã em corpo são.” As duas coisas andam juntas, e trazem consigo o despertar da inteligência espiritual.
O uso equilibrado da palavra é, pois, uma prática sagrada e constitui um ponto central do caminho da sabedoria. No budismo, os seguidores de Buda Amida recitam diariamente a “Cadeia de Ouro”, assumindo um compromisso interior. Eles dizem:
“Eu sou um elo da Cadeia de Ouro do amor de Buda Amida, que se estende pelo mundo. Devo conservar meu elo brilhante e forte. Tentarei ter pensamentos belos e puros, dizer palavras belas e puras, praticar ações belas e puras, porque sei que de tudo quanto agora faço depende a minha felicidade ou infelicidade, assim como a felicidade dos outros seres. Possa todo elo da Cadeia de Ouro do amor de Buda Amida tornar-se brilhante e forte. E possamos todos nós alcançar a paz perfeita.”(8) Buda Amida significa luz eterna e vida infinita.
Em qualquer situação, as palavras que usamos são instrumentos do pensamento, e o pensamento é uma expressão do estado da alma. Assim, o grau médio de pureza das nossas palavras revela o nível médio de pureza da nossa alma. A purificação é um ato de vontade que dura a vida toda, mas produz alívio crescente a cada instante.
Controlar e educar o fluxo das palavras pensadas e faladas que produzimos em nossa consciência elimina, gradualmente, a causa do nosso sofrimento, e também nos permite assumir por completo as rédeas da nossa vida. Na tradição milenar do hinduísmo, um trecho dos Upanixades é usado há muitos séculos como mantra e oração. A força da sua simplicidade é inspiradora. Diz o Aitareya Upanixade:
“Que a minha palavra esteja em unidade com a minha mente. E que a minha mente esteja em unidade com a minha palavra. Ó tu, ser todo iluminado, afasta o véu da ignorância da minha frente, para que eu possa distinguir a tua luz. Quero buscar, noite e dia, incessantemente, a correta compreensão do teu ensinamento. Que eu possa falar a verdade divina. Que eu possa falar a verdade. Que a verdade me proteja. Que ela proteja meu mestre.”(9)
A beleza interior de uma oração como esta desperta a paz e o silêncio da alma. O coração humano é como uma fonte de águas puras. Dali brota a palavra correta, iluminando a consciência de quem ama a verdade.
(1) A Chave dos Grandes Mistérios, de Eliphas Levi, Ed. Pensamento, SP, p. 111.
(2) Provérbios, 15, 1-7, e 15:26 no Antigo Testamento.
(3) Dhammapada, Caminho da Lei, tradução e adaptação de Georges da Silva, Ed. Pensamento, SP, p. 19.
(4) Cartas dos Mestres de Sabedoria, editadas por C. Jinara-jadasa, Ed. Teosófica. Ver a Carta III para Laura Holloway, p. 147.
(5) Budismo: Psicologia do Autoconhecimento, de Georges da Silva e Rita Homenko, Ed. Pensamento, SP. Ver p. 77.
(6) Citado em A Proposta Original da Sociedade Teosófica, de Carlos C. Aveline, Ação Teosófica, 2002, 36 pp. Ver p. 11.
(7) A Chave dos Grandes Mistérios, Eliphas Levi, Ed. Pensamento, SP. Ver p. 215.
(8) Citado por Murillo Nunes de Azevedo em Rumo a uma Mente Sábia e uma Sociedade Nobre, coletânea de textos publicada pela Editora Teosófica, Brasília, 1994. Ver pp. 132-133.
(9) The Upanishads, traduzido do sânscrito Swami Prabhavananda e Frederick Manchester, Penguin Books, USA. Ver p. 61.
(*) O Autor é jornalista, editor e autor brasileiro, além de estudante de teosofia.
Fonte: Texto publicado no site http://www.terra.com.br/planetanaweb/355
quinta-feira, 12 de março de 2009
O PODER DA PALAVRA
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