quinta-feira, 19 de março de 2009

O SIGNIFICADO DA VIDA E DA MORTE

“Os homens temem a morte”, escreveu Lord Bacon, “como as crianças temem o escuro”. Teremos medo e repulsa da morte porque ela rompe nossos laços com tudo que estimamos nesse mundo? Por ser um evento cuja natureza é desconhecida? Mas a mente não pode reagir ao que é desconhecido, a não ser que no lugar do desconhecido coloque-se algo conhecido, isto é, algo de nossa experiência passada. Deve haver uma razão para assim se fazer. Nós já desenvolvemos na mente o medo de várias experiências, e projetamos esse medo no evento que vai acontecer. Contudo, se considerarmos a morte de maneira simples e tranqüila, pondo de lado as idéias que foram inculcadas em nossa mente, não será ela, na verdade, um fenômeno tão natural quanto o nascimento?

A morte corre o tempo todo à nossa volta, em toda parte, sob várias formas. As folhas caem das árvores, e folhas novas surgem. As células do nosso corpo morrem aos milhões, e novas células são fabricadas. Toda forma de vida perece e cede lugar a uma forma nova. Um fenômeno tão universal, natural e aparentemente necessário não pode ser desprovido de uma significação profunda. Se conseguirmos compreender essa significação, talvez nossa atitude com relação a ela possa de algum modo modificar-se.

Em qualquer forma de vida, seja um animal, uma árvore ou um ser humano, sempre há forças que constroem e forças que causam desintegração. Esses dois conjuntos de forças estão entretecidos na entidade viva e operam simultaneamente. Mesmo numa criancinha, que parece crescer de momento a momento, existe o metabolismo de fragmentar e construir. À medida que cresce, o equilíbrio inclina-se para outro lado; na velhice, as forças do declínio prevalecem sobre as do crescimento.

Nenhuma forma dura para sempre. Como disse Buda, tudo que é composto deve, a seu tempo, decompor-se. Haverá alguma forma, por menor que seja, que não seja composta? Até mesmo o átomo possui uma estrutura sustentada por forças internas. Tudo que surgiu tem que se desintegrar, isto é, tem que ser reduzido ao estado original. Somente aquilo que é absolutamente simples pode existir para sempre.

O que é simples? Certamente não o nosso corpo, nem nossa mente; nada que seja diferenciado pode ser chamado de simples. A única coisa simples é o espírito uno e universal, auto-existente, que é postulado na filosofia hindu e que está unido à base universal da matéria. Não a matéria que foi diferenciada, modificada e construída de várias maneiras, mas a matéria na sua homogeneidade primordial, da qual surgiu tudo que é heterogêneo. Podemos considerar matéria e espírito como dois aspectos de uma unidade que não está sujeita à morte e à decadência.

O Bhagavad Gita fala do Atma, o espírito eterno que sopra sua vida para o interior de tudo, de cada forma, e ainda assim é intocado pelos fenômenos que afetam essa forma: “Ele não nasce nem morre; não tendo sido, também não deixará de ser; não nascido, perpétuo, é eterno e antigo; ele não morre quando o corpo é destruído”.

Todo o segundo capítulo do Bhagavad Gita ed devotado à morte do corpo e a imortalidade do espírito. Vida e morte são como dois lados da mesma moeda. É pela morte das formas existentes que a natureza é capaz de seguir adiante, em direção a outras formas melhores.

Melhores em que sentido? Para a evolução da vida, a implementação do seu propósito, o desabrochar de suas faculdades, a exibição das riquezas que estão dentro de si. Existe, todo o tempo, a ascensão da vida de degrau em degrau, em uma escala cujo fim não percebemos. Cada forma dá passagem a uma forma renovada, para que a vida possa se mover para cima. Mas cada forma está sujeita ao declínio, e, em relação às formas, é o declínio que prevalece.

Quando ocorre a morte da forma, surge a possibilidade de um início completamente novo, com uma forma nova, muito embora a hereditariedade interfira nesse processo. Mesmo assim, podemos ver que uma criança é diferente do pai e da mãe. Ela começa sua nova existência, muito embora tenha sua herança física e também uma hereditariedade psíquica ou mental, derivada da individualidade que existiu anteriormente num outro corpo.

Degrau para outro estágio

Quanto mais se estuda a natureza, mais parece que, nas suas formas mais elevadas, toda manifestação da vida é de algum modo única, com uma individualidade própria. As especulações dos grandes filósofos concordam sobre a continuidade da vida humana, que não é interrompida pela morte, mas levada adiante em outros níveis.

No caso do homem, esse é um outro modo de se expressar a verdade com a qual estamos todos familiarizados: a sobrevivência do homem, a sobrevivência de algum aspecto que é parte essencial dele mesmo. Poderíamos dar a isso o nome de alma.

Enquanto houver a morte do corpo e a imortalidade do espírito, entre ambos existe a vida individual, uma consciência com fluxo e refluxo periódicos, governada pela atração do espírito e da matéria. Esse é um fenômeno de retorno, de repetição, do qual vemos tantos exemplos na natureza; em outras palavras, é a reencarnação. A vida balança entre o nascimento e a morte não apenas uma vez, mas muitas vezes, enquanto o pêndulo for movido pela mola do próprio processo do viver.

Se a morte é nada mais que um incidente, e a forma material é apenas uma morada provisória, um degrau para outros estágios, não é razoável afirmar que deixar de lado a vestimenta da carne e as paixões que a ela pertencem é uma libertação, do ponto de vista da alma? Platão pensava que somente quando a alma estivesse livre do corpo seria possível compreender sua natureza elevada.

Se considerarmos a vida como independente do corpo. O fracasso do instrumento não pode significar sua extinção, nem a extinção das faculdades que a ele pertencem. A morte é apenas um portal, e o que se segue à morte do corpo é uma experiência bastante diferente da aniquilação do aspecto físico. Lá está a mesma consciência, com suas emoções e ímpetos, as impressões que recebeu, as imagens que formou e todas as reações ainda na memória.

As imagens que são levadas tendem a enfraquecer devido à falta de posterior contato com as cenas que a causaram. Eu estou aqui, olho para as árvores, para os meus amigos. Tenho essas imagens na minha mente; se me afastar para longe lembrarei desse local durante algum tempo, mas depois a memória começará a desaparecer.

Algo similar acontece à consciência individual. Ao serem removidas as condições com as quais esteve em contato, às quais esteve reagindo, a entidade tenderá a se tornar cada vez mais retirada e a viver num mundo próprio. Quando nada exige nossa atenção, tendemos a dormir ou devanear. O estado pós-morte deve ser semelhante a sonhar; um estado de retirada no qual o ego consciente está envolvido por suas próprias idéias, como nos sonhos.

Na morte, entramos num estado de retirada para dentro de nós mesmos, um tipo de involução no qual podemos ter experiências muito reais, comparáveis às dos sonhos. Assim como os sonhos são a reelaboração de emoções e de materiais acumulados na vigília, o estado pós-morte baseia-se no material reunido durante a vida. Quando esse material se exaure, aquele que dorme entra num sono profundo e sem sonhos, um estado de consciência onde o que quer que aconteça não é lembrado.

Então vem o renascimento. Voltamos a um novo corpo físico sem qualquer memória prévia. Nada permanece da história antiga. A personalidade foi-se; retornamos banhados e limpos pelas águas do Letes. Não lembramos do nosso passado, e devemos ficar contentes por isso. Se tivéssemos que carregar o fardo de tudo que fomos e fizemos, nossa vida atual seria um pesadelo. Mas a cada vez começamos como uma pessoa nova. Vivemos, dormimos durante o intervalo e voltamos novamente, esquecidos de tudo. Retornamos como uma criança inocente, para começar um novo capítulo, para escrever uma história melhor.

Mas o que acontece? Observamos a pessoa e vemos que depois de alguns anos ela pode se tornar irreconhecível, com características que não se suspeitaria existir na criança. Isso acontece porque trazemos conosco as sementes do passado; assim como os genes transmitem características, também a personalidade passada é transmitida, mas não cresce até que encontre solo apropriado. As velhas tendências podem estar lá, mas até que sejam provocadas elas permanecem adormecidas. Por isso um ambiente favorável é tão importante para a criança. Infelizmente, muitas vezes o novo torna-se uma cópia do velho; uma cópia modificada, mas essencialmente uma reafirmação.

Isso significa apenas que não morremos “suficientemente”. Como entidade psicológicas, como compostos psíquicos, não fomos completamente dissolvidos. O homem liberto e perfeito é chamado asekha, que significa “sem nada pendente”. Ele nada transporte, liquidou sua fatura. Se pudermos morrer completamente como entidade psíquica, de modo que a nossa natureza seja reduzida à pura simplicidade, à natureza original, haverá uma qualidade nova que será para sempre uma alegria. É assim, acredito, que os mestres vivem suas vidas. Juntamente com sabedoria e maturidade, eles conservam a inocência e a sensibilidade da infância e da juventude. Todas as quatro estações estão neles misturadas e combinadas para tornar a vida perfeita.

A morte pode significar renovação, mas o que dizes da separação daqueles a quem amamos? É natural sentir saudade das pessoas que se tornaram parte da nossa vida; contudo, se o nosso amor for suficientemente profundo para nos dar um senso de unidade, então até mesmo a dor pode ser transmutada num sentimento de proximidade.

Pode ser que o nosso amor por alguém, que deriva seu caráter de circunstâncias particulares, tenha que ser colocado em diferentes compartimentos para se tornar perfeito. Talvez quando estamos fisicamente juntos não estejamos tão unidos quanto imaginamos. Cada ser está separado dos outros por uma muralha. Temos que deslindar o mistério da separação. Não somos unos fisicamente nem em nossas mentes, mas podemos ser unos se ultrapassarmos a mente. Amamos nossos amigos enquanto estamos juntos, mas, se esse amor for puro, estará presente quando estivermos separados.

Nos nossos melhores momentos, quando vemos algo belo em alguém, quando em algum grau penetramos sua alma, há em nós um sentimento que se torna profundamente uno com aquela beleza, com a natureza daquela alma. Um sentimento assim deve prevalecer sobre sentimentos menores. No amor que nada deseja para si próprio não pode haver separatividade. Se pudermos compreender que a morte é uma questão de tempo e que só existe unidade além do processo do tempo, poderemos considerar a morte com olhos gentis.

N. Sri Ram - autor do presente texto - foi presidente internacional da Sociedade Teosófica, escreveu vários livros e faleceu em 1973.

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