quinta-feira, 3 de junho de 2010

MEIA-NOITE EM PONTO

Nada vejo, apenas me abandono e deixo-me ser conduzido refazendo a viagem.

Pousei o malho, descansei o cinzel.
Sinto-me cansado, minhas mãos estão feridas cheias de calos, mesmo assim, não me animo a repousar.
Deixo-me ao sabor de meus pensamentos. Sinto-me de olhos vendados entrando pela primeira vez nesta oficina. Nada vejo, apenas me abandono e deixo-me ser conduzido refazendo a viagem.
Olho para a pedra bruta, que como primeira tarefa tinha que desbastar, tornando-a uniforme e polida. Por instantes, um desânimo incomum toma conta de mim. Já trabalhei nela por um longo tempo, não sei dizer quantos milhares de vezes bati com violência o malho contra o cinzel, sem contar as vezes que o malho em vez de acertar o cinzel, penalizou minha mão, razão dos ferimentos.

A pedra bruta continua disforme.
Por que?
Tenho me empenhado tanto. Minhas mãos estão feridas, e meu corpo clama por repouso.
Será que o malho é muito leve e a força de seu impacto contra o cinzel é insuficiente para tirar lascas da pedra bruta?
Será que o cinzel está pouco afiado, sua ponta arrendondada?
Não pode ser.
As ferramentas me foram distribuídas em perfeitas condições de uso, e são adequadas à realização da tarefa que me foi confiada.
Porque então não consigo progredir, dando forma à pedra bruta?
Sinto agora o prazer do silêncio. Já é madrugada. Meus irmãos todos adormeceram, vencidos pelo cansaço de mais uma jornada. Minhas mãos feridas chamam minha atenção, sem atividade começam a doer.
Novamente olho a pedra bruta, e para as ferramentas, procuro explicação lógica para o meu insucesso.
Não encontro.
Tudo está perfeito.
Tenho então a certeza de que o sucesso no desbaste da pedra bruta não está ligado simplesmente à qualidade das ferramentas e à força que emprego repetidas vezes.
Então, falta-me o quê?
Sim, porque se tenho a tarefa e as condições para executá-la, o sucesso depende apenas de mim.
Não pode ser, tenho me esforçado, trabalho incansavelmente, não me queixo, escondo as chagas de minhas mãos, não mostro o cansaço, procuro sempre servir a ser servido. Onde, então, estou errando?
Agora, começo a ouvir os sons da madrugada.
Volto-me cheio de dúvidas aos meus pensamentos.
O cansaço da jornada começa a vencer o meu corpo, mas a vontade de descobrir a razão de meu insucesso é maior, o que me faz sentir liberto da fadiga.
Olho novamente para a pedra bruta, minhas mãos deslizam por ela, fecho os olhos e investigo meu trabalho, nada vejo, apenas sinto. Aquela pedra não é mais meu objeto de trabalho, é parte de mim, estamos integrados. Formamos juntos um só corpo.
Surpreendo-me. Descubro a existência de um vértice. Fico animado.
Finalmente parece que meu trabalho não foi em vão, apenas não tinha conseguido perceber a olho nu aquele pequeno resultado, foi necessário descobri-lo, mesmo que de olhos cerrados.
Mantenho-me inerte, consigo sentir o prazer da conquista que meus olhos não conseguiram ver, mas que meu coração me fez sentir.
Sinto os primeiros raios de sol entrando pelas frestas do telhado da oficina, do lado oposto ao que me encontro.
Começo a entender que todo o esforço, as mãos feridas, de pouca valia foram, pois não tinha convocado meu coração para o trabalho de desbaste da pedra bruta.
Não preciso mais da força. As ferramentas devem ser guiadas pelo coração, pelo sentimento puro, pela busca incessante da perfeição.
Reconfortado, abro os olhos. Desta vez, encaro a pedra bruta, percebendo claramente que já não é tão disforme como antes, essa visão me compele. Tiro o malho do repouso, ao cinzel determino o fim do seu descanso, e com amor começo o desbaste.
Não sinto as mãos feridas. O esforço é contido. Vale mais a sintonia das batidas do malho, absorvidas pelo cinzel bem dirigido pela mão firme e decidida, em busca da perfeição.
O resultado é imediato, outro vértice toma forma.
Ouço agora o burburinho dos irmãos que se aproximam da porta de entrada da oficina.
É meio-dia em ponto.
Estou pronto para continuar meu trabalho.
As mãos não doem e o coração está exultante.
Minhas mãos dão movimento ao malho, meu coração guia o cinzel,meus olhos reproduzem o resultado para deleite de meu espírito.
Estou feliz e satisfeito, graças ao Grande Arquiteto do Universo que a todos guia e ilumina, e que foi meu companheiro nestes momentos de reflexão. Fez-me ver que todos somos capazes de realizar as tarefas mais difíceis, bastando tão-somente acreditar em si mesmo, sabendo valorizar o esforço, recompondo forças para continuar. Não esmorecendo nunca, jamais desviando de seus objetivos, ouvindo seu coração e ensinando seus olhos a ver o que precisa ser visto mantendo a inabalável certeza de que a obra realizada deve ser oferecida ao Grande Arquiteto do Universo que nos guiou e conduziu para a obtenção do resultado.
Nada se fez, ou será feito senão pela mão Dele.
Graças te dou, Grande Arquiteto do Universo, por me manteres na relação dos Teus protegidos, onde por certo também estão todos os irmãos desta e de todas as outras oficinas espalhadas pelo mundo que Tu criastes e que a Ti pertence, assim como todas as coisas.

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